quarta-feira, 21 de abril de 2021

Ninguém soube descrever tão bem a profissão de repórter fotográfico como Lilo Clareto

O repórter-fotográfico por Maurílo Clareto (Lilo Clareto)
 
Você viu o brilho da dor nos olhos das pessoas.
Você sofreu com elas.
Você pisou nas cinzas, na brasa e respirou a fumaça do incêndio.
Você sentiu o cheiro da morte e quase pisou na poça de sangue.
Você tropeçou no cadáver e quase levou um tiro. Você estava no confronto.
Você ouviu os gritos nas entranhas da rebelião.
Você contou os mortos.
Você levou porrada da polícia e foi ameaçado pelo traficante.
Você esteve no coração do lar daquela família dilacerada pela violência.
Você viu de perto a fome e o desemprego.
Ninguém melhor que você sabe o significado físico da miséria, da exclusão social, da má distribuição de renda.
Porque você esteve também em banquetes nababescos.
Você desceu as ruas da favela e subiu nos elevadores da FIESP.
Você sabe o que é Brasilândia, Jardim Ângela, SESC Itaquera
e sabe o que é Leopoldo, Fasano e Credicard Hall.
Você viu – muito bem – onde foi enfiado o dinheiro dos impostos.
Você provou um pouco da vida de quem tem muito, muito mais do que necessitaria ter.
Você comeu caviar.
Você viu a luz na expressão do artista e desejou a boca, as pernas, os seios da modelo.
Você se excitou. Se duvidar, você a amou.
Você fitou o semblante do homem santo, você orou com a multidão. Você foi quase santo.
Você quase beijou o umbigo da passista e sambou na avenida. Foi pagão entre pagãos.
Você aprisionou a alma do Ianomâmi e ainda tem sua alma presa em uma aldeia.
Você viveu a glória das vitórias e o desespero das derrotas.
Você esteve sempre ali, na cara do gol.
Você ensurdeceu com o ronco dos motores e aspirou o cheiro de combustível nos cock pits.
Você chorou com toda aquela gente a morte do campeão.
Você estava lá quando o povo foi para as ruas e derrubou o presidente. Você se misturou aos cara-pintadas.
Na festa democrática das eleições você também estava lá. E se emocionou.
Você se angustiou com a dor das diferenças, com a tragédia das fatalidades. Você sofreu.
Você bebeu o riso das grandes euforias e pôs nos olhos os brilhos das apoteoses. Você viveu!
Você viveu muito! Você vive intenso.
Por isso você bebe. Você fuma, ri alto, protesta, provoca, faz festa.
E é tachado de maluco, transviado, inconseqüente, alucinado, irresponsável, inconveniente…
Também assim chamam os poetas.
 
Por isso, não ligue para os humores daqueles que não te entendem e, sentados atrás da mesa, na frieza dos monitores e do ar condicionado,
arautos do “dead line” aguardam, impacientes, sua foto.
Entenda: eles só podem viver depois do fechamento…

 
Maurilo Clareto, repórter fotográfico.

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